A Câmara dos Deputados aprovou, na terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda que retira o direito de voto de presos provisórios — uma mudança radical em uma regra que vigorava desde a Constituição de 1988. A proposta, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), foi aprovada por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, em plenário em Brasília. O texto, incorporado ao PL Antifacção (PL 5582/25), altera a lógica constitucional que até então garantia o voto a quem ainda não foi condenado. O que parece lógico, na verdade, é um paradoxo: enquanto presos provisórios perdem o direito de escolher seus representantes, policiais militares que garantem a segurança das urnas — muitas vezes em turnos de 24 horas — também não podem votar. É a lógica do absurdo, como chamou o advogado Milton Córdova Júnior em artigo publicado no Migalhas.
Uma mudança que desafia a presunção de inocência
Desde 1988, a Constituição brasileira garante que apenas quem foi condenado com sentença transitada em julgado perde os direitos políticos. Presos provisórios — pessoas ainda inocentes na lei — tinham o direito de votar, mesmo dentro de uma cela. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até montava seções eleitorais especiais dentro de presídios, conforme previsto na Lei nº 9.504/1997 e na Resolução TSE nº 23.659/2021. Nas eleições municipais de 2024, mais de 6.000 presos provisórios votaram em todo o país. Agora, isso acaba. Van Hattem argumentou que "o voto é expressão da plena cidadania, pressupõe liberdade e autonomia de vontade, condições inexistentes durante a custódia". Para ele, permitir que presos votem é "uma regalia", um "contrassenso". Mas será que a privação da liberdade física justifica a privação da cidadania política? Muitos juristas dizem que não. A presunção de inocência é um pilar do Estado democrático. Retirar o voto antes da condenação é, na prática, antecipar uma punição.
O custo e o risco que não justificam a mudança
O relator do projeto original, Guilherme Derrite (PP-SP), defendeu a emenda dizendo que ela "visa diminuir os custos e riscos operacionais do Estado" com a instalação de seções eleitorais em presídios. Mas os números falam por si: em 2024, apenas 6.000 votos foram emitidos por presos provisórios em um eleitorado de mais de 156 milhões. O custo logístico, embora real, é ínfimo diante do impacto simbólico. E o risco? A segurança das seções em presídios já é garantida por protocolos rigorosos. O que parece ser uma medida de eficiência, na verdade, é um gesto simbólico — e politicamente carregado. Derrite chegou a criticar a gestão petista anterior, embora negue politizar a questão. Mas o timing não é casual: a aprovação ocorreu em um ano de pré-campanha para as eleições gerais de 2026, quando o tema "segurança" está em alta.
A lógica do absurdo: quem protege as urnas não pode votar
Aqui está o ponto mais absurdo da história. Enquanto presos provisórios tinham seções eleitorais dentro dos presídios, os policiais militares que trabalhavam em turnos durante o pleito — muitas vezes sem folga, sem tempo para sair do posto — não podiam votar. Não por decisão judicial, mas por regulamento interno. O TSE não regulamentou nenhuma solução para eles. Enquanto o Estado gasta recursos para garantir o voto de quem está preso, ignora quem garante a ordem para que esse voto aconteça. Milton Córdova Júnior, advogado e especialista em direito eleitoral, aponta: "É como se o Estado dissesse: vocês, que protegem a democracia, não são dignos de participar dela". Isso não é apenas injusto. É profundamente contraditório. Um sistema que valoriza a segurança pública deveria facilitar o voto dos agentes que a garantem, não ignorá-los.
Quem será afetado? Os números não mentem
Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em outubro de 2025, havia 240.000 presos provisórios no Brasil — mais de 40% da população prisional total. A maioria está em cadeias superlotadas, sem acesso a educação ou trabalho, mas ainda assim, até agora, tinha o direito de escolher seus representantes. A nova regra, se aprovada no Senado, afetará diretamente essa massa. Não há estimativa de quantos votariam em 2026, mas é certo que muitos não terão sequer conhecimento da mudança. A falta de informação é outro problema: como informar milhares de pessoas em locais isolados? O TSE, que já enfrenta desafios de logística, agora terá que lidar com a desmobilização de seções em presídios — e ainda não apresentou um plano.
O que vem a seguir? O Senado e os riscos constitucionais
A emenda agora segue para o Senado Federal, onde passará por comissões de Constituição e Justiça, e de Direitos Humanos, antes de ir a plenário. A aprovação lá não é garantida. Partidos como PSOL, Rede e alguns da base governista já sinalizaram resistência. Há riscos de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF), caso a lei entre em vigor. O próprio STF já decidiu, em 2012, que o voto é um direito fundamental, não um privilégio. Retirá-lo de presos provisórios pode ser visto como uma violação da dignidade da pessoa humana — um dos princípios fundamentais da Constituição. O que parece uma medida de "ordem" pode se transformar em um precedente perigoso: se a privação de liberdade justifica a perda do voto, por que não a perda do direito à saúde, à educação, ao silêncio?
Um debate que vai além das cadeias
Essa mudança não é só sobre presos. É sobre o que queremos que seja a democracia brasileira. Uma democracia que exclui quem está preso — mesmo que inocente — ou uma que tenta incluir todos, mesmo os mais marginalizados? E o que dizer dos policiais? Eles não são apenas funcionários. São cidadãos. Homens e mulheres que, em muitos casos, trabalham em bairros pobres, onde o voto pode ser a única arma contra a violência. Se o Estado não os deixa votar, o que está dizendo sobre o valor que atribui à sua cidadania? A contradição é gritante. E ela não é técnica. É moral.
Frequently Asked Questions
Por que presos provisórios tinham direito de votar antes?
Antes da emenda, a Constituição de 1988 garantia o voto a todos os cidadãos maiores de 18 anos, exceto os condenados com sentença transitada em julgado. Presos provisórios, por ainda não terem sido julgados, mantinham seus direitos políticos com base na presunção de inocência. O TSE até criava seções eleitorais dentro dos presídios, como fez em 2024, quando mais de 6 mil votaram.
Quantos presos provisórios vão perder o direito de votar?
Segundo o Depen, em outubro de 2025, havia 240.000 presos provisórios no Brasil — cerca de 40% do total da população prisional. Caso a emenda entre em vigor, todos eles serão excluídos do eleitorado, mesmo que ainda não tenham sido condenados. A maioria está em cadeias superlotadas, sem acesso a informação, o que torna a comunicação da mudança um desafio logístico e ético.
Por que policiais militares não podem votar durante as eleições?
Policiais militares em serviço durante o pleito são proibidos de votar por regulamentos internos das corporações, que exigem dedicação exclusiva à segurança das urnas. O TSE nunca criou mecanismos como seções móveis ou votação antecipada para eles, apesar de milhares trabalharem em turnos de 24 horas. Enquanto presos provisórios tinham seções especiais, os guardiões da democracia ficaram de fora — uma contradição que o advogado Milton Córdova Júnior chamou de "lógica do absurdo".
A emenda pode ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal?
Sim. O STF já entendeu, em decisões anteriores, que o voto é um direito fundamental e não um privilégio. Retirá-lo de presos provisórios pode ser considerado uma violação da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana. Caso a lei entre em vigor, partidos e entidades de direitos humanos devem entrar com uma ADPF, e o STF pode derrubá-la por inconstitucionalidade.
O que muda para as eleições de 2026?
Se aprovada no Senado e sancionada, a emenda entrará em vigor para as eleições gerais de 2026. Isso significa que os 240.000 presos provisórios não poderão votar, e as seções eleitorais nos presídios serão desativadas. O TSE terá que reorganizar a logística eleitoral, mas não há plano público para isso. Já os policiais militares continuarão sem direito a votar durante o pleito — a menos que o próprio TSE decida agir.
Guilherme Peixoto
novembro 22, 2025 AT 23:02Essa história é tipo um filme de terror mas sem o susto... o povo tá tirando direito de quem tá preso, mas esquece que o policial que protege a urna também não vota. 🤦♂️